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Corpo-mulher: entre prazeres e culpas

Atualizado: 20 de mar.


Texto por: Bruna Heleno Zarske de Mello e Marina Corbetta Bene (@marinabenedet).


É impossível pensar a relação que as mulheres estabelecem com os seus corpos, sem compreender que essa relação é construída dentro e amplamente atravessada pelo sistema patriarcal.

Entende-se o patriarcado como a manifestação institucionalizada da dominância masculina, que organiza a sociedade de modo a subordinar as mulheres nos âmbitos político, econômico, social e simbólico. A historiadora norte americana Gerda Lerner (2019) argumenta que o patriarcado não surgiu como um evento isolado, mas como um processo gradual e milenar, que se consolidou por meio de práticas como a apropriação da capacidade reprodutiva das mulheres, a institucionalização da escravidão feminina e a regulamentação da sexualidade por código legais.






Esse sistema não é uma ordenação cristalizada, tendo passado por inúmeras mudanças ao longo do tempo. Enquanto o elemento de dominação se mantém constante, as formas dessa dominação se modificam conforme o tempo e o espaço. É possível afirmar que elas evoluíram e se sofisticaram, tornando contornos menos explícitos e mais difusos, mas não menos eficazes.


Mesmo no século XXI, o corpo feminino, por exemplo, permanece sendo um objeto de regulação, cuja mercantilização não apenas desapropria inadvertidamente as mulheres de autonomia sobre ele, mas também legitima a hierarquia social e a divisão sexual do trabalho. Essa persistência de hierarquias de poder de formas sutis foi precisamente o que chamou a atenção de teóricos contemporâneos, como Michel Foucault.


Em obras como Vigiar e Punir (1975) e A História da Sexualidade (1976), Foucault analisou como o poder se manifesta nas relações diárias, nas práticas sociais e naquilo que poderia ser considerado pequenas instituições, que impõem regulamentos que definem o que é “normal” ou “aceitável” em dada sociedade. São as constantes e ubíquas práticas disciplinares que moldam os corpos, transformando-os em instrumentos de controle social. Essas práticas de controle se integram à lógica do patriarcado contemporâneo, tornando-o ainda mais insidioso e potente.


Uma das mais importantes formas de controle e disciplinarização das mulheres é a objetificação de seus copos, processo pelo qual elas são vistas e tratadas como objetos e não como seres humanos completos com agência e individualidade. É a ideia de que seus corpos existem principalmente para o prazer e consumo de outras pessoas, particularmente dos homens.


Dentro dessa estrutura, o corpo feminino é continuamente regulado por padrões estéticos e comportamentais que definem o que seria o “ideal”. Essa imposição gera uma tensão interna e um amplo sofrimento, uma vez que as mulheres muitas vezes se veem obrigadas a modificar, sujeitar, ocultar ou exibir seus corpos de acordo com critérios que não correspondem às suas vivências ou desejos. Elas também podem se encontrar em situações de distanciamento de sua própria materialidade, negando a realidade de seus corpos e falhando em fruir deles genuinamente.


Numa organização social que educa mulheres a odiarem referenciais do que seria o feminino (como a menstruação, por exemplo) e a romantizarem outros aspectos dessa mesma realidade (como a maternidade, por exemplo), Del Priori, em seu livro “Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia” (2009) resgata como construiu-se historicamente no Brasil a lógica das mulheres “boas” e “para casar” e das mulheres “não boas” e “pecadoras”, ou, coloquialmente “para transar”. Nesse longo processo, inúmeros foram os caminhos tomados para educar o corpo, alienando as mulheres de sua materialidade como se, ao distanciar-se de seu próprio corpo (e do prazer que ele possibilita) ela conquistaria um lugar “seguro” e “de respeito” na sociedade. A suposta segurança estaria dentro do seio familiar e nos braços de um único parceiro; já o respeito, precisaria ser continuamente logrado por elas.


Uma das expressões mais conhecida no Brasil, e que nos auxilia a compreender essa dinâmica, é: “a mulher precisa se dar ao respeito”. Essa frase, normalmente dita em referência a uma mulher de comportamento sexual considerado desviante, informa que o respeito das outras pessoas precisa ser conquistado pelas mulheres, não sendo um direito ontológico delas. Para as mulheres, diferente de como é para os homens, o respeito está condicionado a um corpo e uma sexualidade que responde a padrões morais patriarcais.


O “dar-se ao respeito” envolve questões relativas a própria experiencia de seu corpo e desse corpo com uma certa moralidade, contraditória também (ou não tanto) no campo desse mesmo espaço doméstico onde surge uma outra famosa expressão: “a mulher deve ser uma santa na sala e uma puta na cama”. 


Essa frase informa que há uma exigência paradoxal ao qual as mulheres devem se adequar: dentro de casa, espera-se que as mulheres sejam, ao mesmo tempo, puras e recatadas ("santas na sala") e sexualmente disponíveis aos desejos dos parceiros ("putas na cama"). Isso reflete padrões sociais que regulam os corpos femininos, estabelecendo limites sobre como as mulheres devem se portar de acordo com o contexto que ocupam, não de acordo com os seus próprios desejos.


Mas a linha reta entre as condições exemplificadas acima, é o aspecto moral que salvaguarda que as mulheres devem sempre preocuparem-se com suas imagens, feitas de si pelos outros. Esconder-se do pescoço aos pés, não saber sobre seus desejos e prazeres, ou, mostrar-se por completa, objetificando a sua materialidade. Em qualquer das opções aliena-se na vontade do outro. Na tentativa de responder as expectativas criadas pelos outros sobre elas, as mulheres acidentalmente renunciaram aos seus corpos e as suas sexualidades.  


Muitos são os cursos vendidos as mulheres sobre como agradar ao homem, como fazer para “enlouquecer” um homem, como fazer para manter um homem apaixonado. Igualmente, muitos são cursos sobre como se vestir para conquistar, como se vestir para manter, como se vestir para ser respeitada, como se vestir para ser amada, como não se vestir para não ser “malfalada”. Não faltam pessoas vendendo conteúdos e produtos de como as mulheres devem ser. Nesses espaços, encontram-se as sutis estratégias compartilhadas e legitimadas socialmente sobre a condição das mulheridades. Mas onde estaria o desejo e o gozo da mulher?


Aquela que sabe de si, que, de alguma maneira experiencia seu próprio corpo, os prazeres e os deleites das transformações as quais passa (de tamanhos, de preferencias, de formas, de idades etc.) costuma ser malvista, no âmbito da moralidade. E, nesse contexto, é ré de dois diferentes discursos: os conservadores e os liberais – incluindo algumas concepções feministas – que irão argumentar que a exposição das mulheres de seus corpos também serviria ao patriarcado, em um formato de hipersexualização dos corpos femininos.


Julgadas por todos os lados, parece não haver muito espaço (se é que haveria algum) para o exercício de alguma ética do cuidado de si no campo da sexualidade para as mulheres. Como viver e olhar esse corpo com prazer e autonomia? Como aproveitá-lo genuinamente? Nesse cenário talvez valha recuperar a ideia de que o problema está no próprio processo de objetificação desse corpo (seja pelos homens, por outras mulheres ou por si mesma), pois objetos não desejam e não gozam de si como agentes no mundo.


A questão não está em sexualizar um corpo, pois a sexualidade (em uma perspectiva ampliada) atravessa as mulheres como sujeitas no mundo e está presente em toda as suas vidas desde a mais tenra idade, mas sim em objetificar esses corpos. A moralidade imposta regula excessivamente as vivências dos corpos das mulheres, que se observam com pouco espaço para movimento, aprisionadas em uma caixinha.


O escrito José Paulo Netto (2022) versa sobre a diferença entre o erótico e o pornográfico. Ele lembra que a pornografia se funda na lógica do capitalismo, onde se mercantiliza o sexo e os corpos das mulheres, ou seja, transforma esta prática e essa materialidade em uma mercadoria-objeto a ser consumido. Já Audre Lourde em seu texto “Usos do erótico: o erótico como poder” (1984) retoma a questão da relevância de, enquanto mulheres, retomarmos o erótico como campo político potente para o exercício das mulheridades, pois ele nos recorda a potência dos corpos e dos encontros possíveis.


A apropriação do erotismo e a reivindicação da própria sexualidade pelas mulheres é um processo de rompimento com essas normas reguladoras que restringem os desejos, o prazer e a expressão sexual das mulheres. Essa reivindicação passa pelo direito de experimentar e explorar o próprio desejo sem culpa ou vergonha, e pela possibilidade de fazer escolhas que não respondam aos ideais, expectativas e desejos das outras pessoas. Em outras palavras, é a recusa ao papel de objeto.


Lorde entende o erótico como a memória (que precisa ser experienciada enquanto sensação ontológica) que guarda e lembra o saber da capacidade de sentir gozo de si. Aqui, cabe a referência do próprio orgasmo: se você está em dúvida se o experimentou é certo que provavelmente não o tenha vivenciado, pois quando você o sente (mesmo que ele varie) você consegue reconhecê-lo.


Assim o é quando se adota o erótico como o saber do gozo que se sabe capaz de sentir: uma memória permanente da capacidade das mulheres de sentir. Sentir que flui e colore a vida com energia que eleva, sensibiliza e fortalece todas as experiências e as torna menos dispostas a aceitar a impotência, ou outros estados do ser que são impostos a elas, como a resignação, o desespero, o autoapagamento, a autonegação e – não por acaso seja o transtorno mais comum entre mulheres – a depressão.


E não há dúvidas, como já colocado anteriormente, que o erótico (como este saber-poder) cria ponte entre as pessoas, uma vez que o gozo compartilhado pode servir de base para compreender as diferenças existentes, mas também a ressalva de que para serem utilizados, os sentimentos eróticos devem ser reconhecidos.






Construir um caminho para sentir-se no direito do prazer na vida, esta seria a chave. Uma ausculta que também convida a presença em si: quais sensações te atravessam nas relações estabelecidas, seja com outros ou com o teu corpo? A diferença não está no que se faz, mas nos modos de fazer e a quem serve este fazer. Se te serve, se serve ao teu gozo e a construção da sabedoria de um corpo que sabe poder sentir tal prazer, estamos no campo do erótico – mesmo que seja numa atividade compartilhada. Aliás, quando há teu gozo e se torna possível a partilha deste, definitivamente estamos no campo do erótico. Então mulher, cabe questionar: quando foi a última vez que você sentiu tesão na ou da vida? Quando foi que você fez do teu corpo um “parquinho de diversão” para o teu brincar compartilhado, única e exclusivamente pelo prazer de estar naquela atividade?


O convite que se deixa é para a lembrança de quão divertida e prazerosa pode ser a experiência sensorial e sentimental de estar viva em uma materialidade corpórea sua (seja, pisando na terra, tomando um banho de mar sem roupa, fazendo uma atividade física, brincando com[o] uma criança, sentindo cócegas, olhando-se no espelho e reconhecendo a própria história, transando com seu ou sua parceira, ou gargalhando de chorar, sentindo o contato da pele na pele, ou a plenitude de alegria que transborda depois de uma realização pessoal ou profissional) com a consciência de olhar aquele momento e pensar: isso vai se tornar uma memória a ser visitada cada vez que eu pensar em me conformar ao desejo do outro!


Mas e o respeito e a segurança? Será necessário renunciar a eles em nome do erótico? Talvez a questão não seja renunciar ao respeito, mas redefini-lo. O que significa ser respeitada? Por quem queremos ser aceitas? O que é um estado de acolhimento verdadeiro? Difícil responder. Algumas mulheres podem escolher enfrentar o julgamento de frente, outras vão encontrar formas de driblar as regras sem um confronto direto. O importante é que a escolha seja de cada uma.


Fontes:


FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: A vontade de saber. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.. ISBN 978-85-7753-294-0


FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. ISBN 978-85-326-0508-5.


LERNER, Gerda. A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens. São Paulo: Cultrix, 2019. ISBN 978-85-316-1534-4


Paulo Neto, José. Apresentação: Para uma introdução a Bocage – De Camões

ao espírito libertino. In: Bocage, Manuel Maria de Barbosa. Da erótica: muito além do obsceno. São Paulo: Boitempo, 2022.


ZANELLO, Valeska. A Prateleira do Amor: Sobre Mulheres, Homens e Relações. Curitiba: Appris, 2022.


ZANELLO. Valeska, Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação.1ª ed. Curitiba, Appris, 2018.

 
 
 

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